Elas escreveram quando não era permitido. Publicaram quando ninguém queria ler. E resistem, até hoje, com a força da palavra.
A história da literatura brasileira também é feita por mulheres negras que romperam barreiras para escrever, publicar e serem lidas.
Desde o século 19, autoras afro-brasileiras enfrentam o racismo e o machismo estrutural para construir uma produção literária marcada por resistência, identidade e ancestralidade.
1. Maria Firmina dos Reis (1822–1917) – A pioneira da literatura nacional

Nascida no Maranhão, Maria Firmina dos Reis é reconhecida por pesquisadores como a primeira romancista do Brasil, com o lançamento de Úrsula em 1859, um romance abolicionista que deu voz aos personagens escravizados em plena era escravocrata.
Publicado de forma anônima (“Uma maranhense”), o livro rompeu com a lógica dominante da época ao abordar a escravidão sob uma perspectiva crítica e sensível.
Além de Úrsula, Firmina escreveu o conto A Escrava (1887) e diversos poemas em que denunciava a violência do sistema escravocrata e defendia justiça e igualdade. Também foi educadora e fundou a primeira escola mista e gratuita do Maranhão, desafiando padrões de gênero e raça no século 19.
Esquecida por décadas, sua obra começou a ser redescoberta a partir dos anos 1970, com o movimento negro e o avanço dos estudos acadêmicos sobre literatura afro-brasileira. Mas foi a partir dos anos 2000 que ela ganhou maior notoriedade:
• 2004: O romance Úrsula foi republicado pela Secretaria de Cultura do Maranhão.
• 2017: No centenário de sua morte, eventos e publicações celebraram sua obra.
• 2022: Sua trajetória ganhou novo destaque ao ser incluída no vestibular da Unicamp e em materiais didáticos.
Hoje, é considerada precursora da literatura afro-brasileira e símbolo de resistência intelectual negra.
“Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e será sempre um grande mal.” — A Escrava (1887)
2. Carolina Maria de Jesus (1914–1977) – O diário da favela que ganhou o mundo

Catadora de papel, mulher negra, periférica e semianalfabeta, Carolina Maria de Jesus saiu da extrema pobreza para se tornar uma das autoras brasileiras mais lidas e traduzidas do século 20.
Nascida em Sacramento (MG) e moradora da favela do Canindé, em São Paulo, registrou por anos suas vivências em cadernos usados, textos que se tornaram o livro Quarto de Despejo (1960), publicado com a mediação do jornalista Audálio Dantas.
A obra teve impacto imediato: a tiragem inicial de 10 mil exemplares esgotou-se rapidamente e foi traduzida para mais de 13 idiomas, chegando aos Estados Unidos, Japão, Alemanha e França. Carolina virou figura pública, concedeu entrevistas e chegou a viajar ao exterior. O sucesso, no entanto, foi passageiro.
Com os livros seguintes recebendo pouca atenção e apoio, Carolina enfrentou dificuldades financeiras até o fim da vida. Morreu esquecida em 1977, mas teve sua obra resgatada e valorizada nas décadas seguintes, especialmente a partir dos anos 2000. Hoje, é reconhecida como um dos maiores nomes da literatura brasileira, símbolo de resistência e autora de uma obra que expõe as violências da pobreza, do racismo e do apagamento histórico.
“Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato felicidade.” (Quarto de Despejo, p. 72)
3. Conceição Evaristo (1946–) – Memória, resistência e “escrevivência”

Mineira de Belo Horizonte e filha de uma lavadeira, Conceição Evaristo iniciou sua trajetória literária de forma tardia, mas se tornou uma das autoras mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Publicou seu primeiro poema em 1990 nos Cadernos Negros, e desde então constrói uma obra marcada por afetos, ancestralidade e denúncia social.
Doutora em Literatura e criadora do conceito de “escrevivência”, uma escrita que nasce das experiências vividas por mulheres negras, Conceição escreveu romances, contos e poemas.
Entre suas obras mais conhecidas estão Ponciá Vicêncio (2003) e Olhos d’Água (2014), vencedor do Prêmio Jabuti. Em 2018, foi nomeada membro honorária da Academia Brasileira de Letras, reconhecimento simbólico da força e legitimidade de sua produção.
“A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície.” — Olhos d’Água (2014)
4. Geni Guimarães (1947–) – Identidade e ternura premiadas

Nascida em São Manuel, no interior de São Paulo, Geni Guimarães começou a publicar seus poemas em jornais locais nos anos 1970 e integrou os Cadernos Negros, projeto essencial para a literatura negra no Brasil. Lançou seu primeiro livro, Terceiro Filho, em 1979, mas foi com A Cor da Ternura (1991) que ganhou reconhecimento nacional.
A obra, de tom autobiográfico, narra a infância de uma menina negra em um ambiente marcado por exclusão e preconceito. Com linguagem poética e intimista, Geni explora temas como identidade racial, afetos familiares e racismo estrutural, sempre com delicadeza e profundidade. O livro recebeu os prêmios Jabuti e Adolfo Aizen, consolidando seu nome no cenário literário brasileiro.
“A salmoura tem a mesma cor da garapa. Só a sede descobre a diferença dos sabores.” — A Cor da Ternura (1991).
A metáfora, simples e poderosa, revela a profundidade de sua escrita, que convida à reflexão sobre as aparências e as experiências de quem sente na pele a exclusão. Em 2022, Geni foi homenageada como personalidade literária.
5. Ana Maria Gonçalves (1970–) – Resgatando a história dos afro-brasileiros

Mineira de Ibiá, Ana Maria Gonçalves deixou a publicidade para se dedicar à literatura e, em 2006, publicou Um Defeito de Cor, um épico de 952 páginas que se tornou um dos romances mais importantes do século 21 no Brasil.
A obra acompanha a trajetória de Kehinde, mulher africana escravizada que, após conquistar sua liberdade, retorna ao Brasil em busca do filho perdido. Inspirada na figura histórica de Luíza Mahin, a narrativa revisita episódios apagados da história afro-brasileira, como a Revolta dos Malês e o cotidiano das senzalas.
O livro foi eleito o melhor romance brasileiro do século 21 em ranking da Folha de S.Paulo e tornou Ana Maria Gonçalves referência central nas discussões sobre identidade, racismo e memória histórica. Em 2025, sua candidatura à Academia Brasileira de Letras trouxe à tona a urgência de ampliar a representatividade da instituição, que nunca teve uma mulher negra entre seus membros efetivos.
“Acho que para você, ser branco não era ter a pele clara, mas ter a alma má.” — Um Defeito de Cor (2006)
6. Jarid Arraes (1991–) – Cordel e contos para recontar heroínas

Nascida no Cariri cearense, Jarid Arraes representa uma nova geração de escritoras negras que entrelaçam tradição e inovação. Cordelista, contista, romancista e poeta, Jarid resgata as raízes da literatura popular nordestina enquanto dá centralidade às vozes de mulheres negras e nordestinas.
É autora de Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (2017), obra que apresenta figuras históricas como Dandara dos Palmares e Carolina Maria de Jesus a partir de versos acessíveis e potentes.
Sua prosa literária ganhou destaque com Redemoinho em Dia Quente (2019), vencedor dos prêmios APCA e Biblioteca Nacional, e com o romance Corpo Desfeito (2021), em que explora temas como trauma, memória e resistência com sensibilidade e força poética.
“Não tenho muitas palavras. Estou procurando pelas crianças que se esconderam nos cômodos pouco habitados da casa.” — Redemoinho em Dia Quente (2019)
7. Djamila Ribeiro (1980–) – Ensaios que ecoam o feminismo negro

Filósofa, escritora e uma das intelectuais públicas mais influentes do país, Djamila Ribeiro nasceu em Santos (SP) e se tornou referência nas discussões sobre feminismo negro, racismo estrutural e lugar de fala.
Com uma linguagem acessível e contundente, seus livros de ensaios alcançaram milhares de leitores e entraram para a lista de best-sellers. Entre eles, O Que é Lugar de Fala? (2017), Quem Tem Medo do Feminismo Negro? (2018) e Pequeno Manual Antirracista (2019).
Djamila traduz conceitos acadêmicos e experiências vividas em textos que estimulam a reflexão sobre privilégios, silenciamento e justiça social. Sua atuação vai além da literatura: foi secretária-adjunta de Direitos Humanos em São Paulo, colunista, recebeu o Prêmio Prince Claus (2019) e foi incluída na lista BBC 100 Women como uma das mulheres mais influentes do mundo.
“O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir.” — O Que é Lugar de Fala? (2017)
8. Mel Duarte (1993–) – Poesia falada da periferia para o mundo

Paulistana, Mel Duarte é poeta, slammer e produtora cultural, parte de uma geração que levou a poesia das ruas para os holofotes. Ela ganhou notoriedade ao vencer campeonatos de poesia falada (slam) e representar o Brasil em festivais internacionais.
Mel publicou seus primeiros versos em Fragmentos Dispersos (2013) e consolidou sua voz em Negra Nua Crua (2016), livro de poemas que também ganhou edição em espanhol. Em Querem Nos Calar (2019), organizou poemas de diversas mulheres para serem lidos em voz alta.
Reconhecida como um dos nomes mais populares da poesia contemporânea brasileira, Mel Duarte integra o coletivo “Slam das Minas” e já lançou até um álbum de poesia falada (Mormaço – Entre Outras Formas de Calor, 2019).
“Agora te carrego no peito / não mais em vagos pensamentos / assim, tenho você sempre por perto / sempre por dentro / de mim e da minha carne.” — Negra Nua Crua (2016)
Literatura negra: uma história ainda em construção
As trajetórias dessas escritoras evidenciam a riqueza de perspectivas que por muito tempo foi ignorada nos círculos literários. Seja nas memórias de uma ex-escravizada em busca do filho, nos diários de uma catadora de papel ou nos poemas declamados em saraus, cada autora aqui apresentada transformou vivências pessoais em arte universal.

