Poucos poetas conseguiram traduzir a delicadeza da alma humana como Alphonsus de Guimaraens (1870–1921). Seu lirismo místico, marcado pela fé, pelo amor idealizado e pela constante presença da morte, elevou-o a um dos maiores nomes do Simbolismo no Brasil.
Alphonsus nasceu em Ouro Preto, em 1870, mas viveu grande parte da vida em Mariana (MG), onde também foi juiz de direito. Sua poesia carregava traços de uma tragédia pessoal: a morte precoce de sua noiva, Constança, um dos amores mais marcantes de sua vida, que influenciou de maneira definitiva seu lirismo sobre morte e perda.
Ele era conhecido pelo perfil introspectivo e recluso. Durante anos, viveu entre a fé católica, o ofício público e a criação poética.
Curiosidades:
- Seu nome de batismo era Afonso Henrique da Costa Guimarães, mas adotou o pseudônimo “Alphonsus de Guimaraens” por influência da estética literária francesa.
- Costumava escrever à noite, depois das audiências no fórum de Mariana.
- Sua obra é marcada por símbolos como a lua, o céu, o mar, a mulher idealizada, a morte e o mistério espiritual.
- É considerado um dos poucos simbolistas brasileiros cuja poesia manteve forte recepção popular até hoje, graças, sobretudo, a poemas como “Ismália”, que virou leitura obrigatória em escolas.
7 poemas de Alphonsus de Guimaraens
1. “Ismália”
“Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava longe do céu…
Estava longe do mar…
E como um anjo pendeu
As asas para voar. . .
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…”
Talvez o poema mais icônico de Alphonsus. “Ismália” é a representação poética da loucura, da transcendência e do desejo de fusão entre o mundo espiritual e o material. A personagem sonha com duas luas, uma no céu, outra no mar, em uma metáfora potente para a duplicidade interna (realidade e delírio).
O movimento final, com o corpo descendo ao mar e a alma subindo ao céu, cria um desfecho trágico-lírico que resume o espírito simbolista: o anseio pelo absoluto, o desencanto com a matéria e a busca por uma fusão com o infinito.
2. Ossa Mea
“Mãos de finada, aquelas mãos de neve,
De tons marfíneos, de ossatura rica,
Pairando no ar, num gesto brando e leve,
Que parece ordenar, mas que suplica.
Erguem-se ao longe como se as eleve
Alguém que ante os altares sacrifica:
Mãos que consagram, mãos que partem breve,
Mas cuja sombra nos meus olhos fica…
Mãos de esperança para as almas loucas,
Brumosas mãos que vêm brancas, distantes,
Fechar ao mesmo tempo tantas bocas…
Sinto-as agora, ao luar, descendo juntas,
Grandes, magoadas, pálidas, tateantes,
Cerrando os olhos das visões defuntas…”
Aqui Alphonsus transforma mãos em símbolos de memória e morte. As “mãos de neve” evocam um corpo já sem vida, e a imagem das mãos que “suplicam” e ao mesmo tempo “ordenam” cria uma ambiguidade. O eu lírico vê essas mãos como uma presença flutuante, etérea, que parece querer fechar os olhos de quem ainda está vivo, talvez uma metáfora para a chegada da morte, para a aceitação do fim ou para a visita de lembranças dolorosas.
3. Pulcra ut Luna
“Celeste… É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste…
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?
Celeste… E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.
Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.
E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.”
O título em latim significa “Bela como a Lua”, e o poema é uma ode à mulher idealizada, tema central da obra de Alphonsus. Ela é celestial, intocável, pura como uma hóstia. Aqui, o poeta não fala de um amor físico, mas de uma figura espiritualizada, algo entre musa e santa. A relação entre a mulher e os astros, sol, luar, reforça a ideia de que ela transcende a condição humana. Esse ideal feminino, que nunca se realiza na carne, é uma das marcas mais fortes do simbolismo de Alphonsus.
4. Árias e canções
“A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,
Que o rubro ocaso em onda ensangüentara,
Brilham do luar à Luz celeste e clara.
Como em órbitas de fatais caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,
Os astros morrem pelo céu pressago…
São como círios a tombar num lago.
E o céu, diante de mim, todo escurece…
E eu nem sei de cor uma só prece!
Pobre Alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.
Hirta e branca… Repousa a sua áurea cabeça
Numa almofada de cetim bordada em lírios.
Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer Além novos martírios.
De mãos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade Média, morta em sagrados delírios.
Os poentes sepulcrais do extremo desengano
Vão enchendo de luto as paredes vazias,
E velam para sempre o seu olhar humano.
Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente…”
Esse poema é um verdadeiro ritual de luto. A descrição da mulher morta como uma “Condessa da Idade Média”, com cabeças brancas, lírios e círios, cria um clima de funeral solene, quase teatral.
O uso de imagens religiosas (preces, cânticos, velas) e medievais (castelos, condessas) reforça o distanciamento entre o eu lírico e a vida mundana. A mulher, mesmo morta, permanece envolta numa aura de mistério e sacralidade.
5. Terceira dor
“P. Sião que dorme ao luar.
Vozes diletas modulam salmos de visões contritas…
E a sombra sacrossanta dos Profetas
Melancoliza o canto dos levitas.
As torres brancas, terminando em setas,
Onde velam, nas noites infinitas,
Mil guerreiros sombrios como ascetas,
Erguem ao Céu as cúpulas benditas.
As virgens de Israel as negras comas
Aromatizam com os ungüentos brancos
dos nigromantes de mortais aromas…
Jerusalém, em meio às Doze Portas,
Dorme: e o luar que lhe vem beijar os flancos
Evoca ruínas de cidades mortas.”
Um dos poemas mais religiosos e místicos da seleção. Ambientado em Jerusalém, o texto mistura referências bíblicas, arquitetura sacra e um clima de adoração solene. Há uma fusão de história e mito: a cidade santa adormecida ao luar, os profetas como sombras, as virgens como personagens que aromatizam o ambiente. É uma visão da fé e da memória sagrada.

6. Cisnes Brancos
“Cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?
O sol não beija mais os flancos
Da montanha onde morre a tarde.
O cisnes brancos, dolorida
Minh’alma sente dores novas.
Cheguei à terra prometida:
É um deserto cheio de covas.
Voai para outras risonhas plagas,
Cisnes brancos! Sede felizes…
Deixai-me só com as minhas chagas,
E só com as minhas cicatrizes.
Venham as aves agoireiras,
De risada que esfria os ossos…
Minh’alma, cheia de caveiras,
Está branca de padre-nossos.
Queimando a carne como brasas,
Venham as tentações daninhas,
Que eu lhes porei, bem sob as asas,
A alma cheia de ladainhas.
O cisnes brancos, cisnes brancos,
Doce afago de alva plumagem!
Minh’alma morre aos solavancos
Nesta medonha carruagem…”
Aqui, Alphonsus rompe com o tom de idealização e mergulha num lirismo de angústia e desespero. Os cisnes, tradicionalmente associados à beleza e pureza, aparecem como presságios tardios, como se chegassem depois que tudo já estava perdido.
O eu lírico, tomado pela dor, os afasta: prefere as aves agourentas, os símbolos da morte. A imagem da “carruagem medonha” e das “caveiras” indica um momento de profundo sofrimento interior.
7. A Passiflora
“A Passiflora, flor da Paixão de Jesus,
Conserva em si, piedosa, os divinos Tormentos:
Tem cores roxas, tons magoados e sangrentos
Das Chagas Santas, onde o sangue é como luz.
Quantas mãos a colhê-la, e quantos seios nus
Vêm, suaves, aninhá-la em queixas e lamentos!
Ao tristonho clarão dos poentes sonolentos,
Sangram dentro da flor os emblemas da Cruz…
Nas noites brancas, quando a lua é toda círios,
O seu cálice é como entristecido altar
Onde se adora a dor dos eternos Martírios…
Dizem que então Jesus, como em tempos de outrora,
Entre as pétalas pousa, inundado de luar…
Ah! Senhor, a minha alma é como a passiflora!”
Um dos mais simbólicos e místicos de Alphonsus. A passiflora (ou flor do maracujá) é usada aqui como metáfora visual da Paixão de Cristo. Cada detalhe da flor, suas cores, suas formas, é conectado aos tormentos de Jesus na crucificação.
O eu lírico, ao final, se identifica com a própria flor, como se compartilhasse dessa dor sagrada. A religiosidade é intensa, mas sempre expressa por meio de imagens da natureza, o que é uma marca constante na estética simbolista do poeta.
8. Ai Dos Que Vivem, Se Não Fora O Sono
“Ai dos que vivem, se não fora o sono!
O sol, brilhando em pleno espaço, cai
Em cascatas de luz; desce do trono
E beija a terra inquieta, como um pai.
E surge a primavera. O áureo patrono
Da terra é sempre o mesmo sol. Mas ai
Da primavera, se não fora o outono,
Que vem e vai, e volta, e outra vez vai.
Ao níveo luar que vaga nos outeiros
Sucedem sombras. Sempre a lua tem
A escuridão dos sonhos agoureiros.
Tudo vem, tudo vai, do mundo é a sorte…
Só a vida, que se esvai, não mais nos vem.
Mas ai da vida, se não fora a morte!”
Este soneto é uma das peças mais maduras da fase simbolista de Alphonsus de Guimaraens. O poema faz um elogio velado à existência dos ciclos naturais da vida, contrapondo sempre a luz e a sombra, o dia e a noite, a vida e a morte.
Logo nos primeiros versos, o sono aparece como um alívio necessário para os vivos. A metáfora vai além da simples necessidade física de dormir: o sono aqui é visto como uma espécie de ensaio para a morte, uma pausa que alivia a dor de viver. Ao longo dos versos, o poeta reforça a inevitabilidade da alternância: o sol dá lugar ao outono, a lua ao breu, a primavera ao declínio, como tudo na natureza.
O final fecha com uma síntese perfeita da filosofia de Alphonsus sobre a existência:
“Mas ai da vida, se não fora a morte!”
É como se a morte fosse uma dádiva, uma redenção para a dor de viver. Essa é uma ideia-chave no Simbolismo e na própria poética de Alphonsus: a vida só é suportável porque a morte existe como destino e consolo final.
O místico, o melancólico e o eterno
Em tempos de poesia instantânea nas redes sociais, os versos de Alphonsus exigem outro tipo de leitura: mais lenta, mais contemplativa, mais interior. Eles não estão ali para serem apenas compreendidos, mas para serem sentidos. Revisitar Alphonsus de Guimaraens é um convite a mergulhar na alma. E sair de lá com outra percepção da dor, da fé e do amor.

