Como construir representatividade orgânica nas cidades? Como evitar que o entusiasmo juvenil se dissolva na rotina cartorial da política?
Até o início deste ano, o Brasil ostentava 29 partidos registrados. Um número que, à primeira vista, sugeriria exuberância democrática; na prática, revela algo mais modesto, como muitas siglas, poucos projetos e quase nenhuma coerência programática. Nesse cenário de legendas errantes, surgiu o partido Missão, não exatamente um herdeiro formal do Movimento Brasil Livre (MBL), mas a “casa representativa” da militância.
Inclusive, eis a beleza da democracia representativa que quase deixamos escapar. O Missão nasceu de um grupo de militantes inconformados com a estrutura política nacional desde 2014 e, ao fim, consagrou-se com a criação de um partido. Isso é o sulco mais puro da democracia — a travessia árdua entre a indignação e a institucionalização. Talvez o último grupo a cruzar, com relativo sucesso, o labirinto burocrático que transforma militância em legenda e slogan em CNPJ partidário. E vale a observação: nem mesmo Jair Bolsonaro, com toda a sua aderência eleitoral, conseguiu concluir esse percurso.
Estive, no último sábado, no primeiro festival do MBL desde a homologação da Missão pelo TSE, em 4 de novembro. Lá não se tratava de uma convenção, tampouco de um congresso político tradicional. Poucos movimentos e partidos políticos realizam o que o MBL faz ao constituir esse espaço de discussão. Três mil e seiscentas pessoas, segundo os organizadores, circularam pelos 12 mil metros quadrados do espaço que abrigou debates, painéis, autógrafos e uma after party — que parece ter se tornado parte estruturante da identidade do grupo.


O centro gravítico do evento era um palanque 360º, cercado pelo público de diferentes partes do país. À esquerda, uma bandeira de Pernambuco. À direita, o estande do MBL Paraná vendendo canetas, camisetas e até obras de arte abstrata produzidas por um integrante que se identifica como remanescente do movimento hippie. Em outro espaço, a engrenagem financeira que mantém o grupo ativo: a comercialização de acessórios e a aposta em uma revista própria, a Valete.
O painel inaugural reuniu Renan Santos — agora pré-candidato à Presidência — e aliados cariocas como o bombeiro Rafa Luz e o sargento Martins. Antes de subir ao palco, o coronel João Jacques Busnello fez duas continências, gesto que deu ao ato uma ambiguidade estética entre comício e formatura militar diga-se de passagem. Também participaram o professor de direito constitucional Acácio Miranda e Renato Batista, coordenador nacional do MBL e suplente de deputado estadual. A dinâmica oscilava entre piadas sobre Ozempic, referências às operações policiais no Rio e discussões sobre ocupação territorial, letalidade e reconfiguração urbana das favelas.
Em paralelo, no chamado “espaço Valete”, um painel mais silencioso discutia “a democracia”, e ao lado era realizado um “Congresso Simulado”. Ali, a crítica ao excesso burocrático ganhava contornos quase pedagógicos por parte de Orlando Silva, Professor Ricardo Almeida e a recém chegada ao movimento, Espectro Cinza. O mais importante, e talvez o que verdadeiramente norteia os interesses da Missão, está o Livro Amarelo, uma espécie de manifesto do movimento, dividido em seis fascículos que vão da história do Brasil às propostas pragmáticas do partido.
Por exemplo, a vereadora Amanda Vettorazzo, ainda no União Brasil, afirmou que industrialização, combate ao crime organizado por meio da “desfavelização” e métricas de desempenho vinculadas às emendas parlamentares compõem o núcleo programático do texto. “Escrevemos um livro para mostrar que existe um projeto de país”, disse ela.


Mas o que quero tratar aqui não é sobre o Livro Amarelo — embora notório projeto — mas sim os aspectos fisiológicos de gestão política e partidária. Primeiramente, o Missão está longe de ser um partido coronelista, tão pouco encaixaria como um partido do Centrão brasileiro. Esquerda? Nem brincando. Direita? Depende de que direita estamos tratando. Direita bolsonarista? Não. Ora, temos outra então? Pois é, o Missão não surge como uma “terceira via” à polarização, e sim uma alternativa da direita brasileira, uma alternativa ao Centrão, batendo de frente com partidos verdadeiramente programáticos — que não são muitos, diga-se de passagem.
Em termos de análise política, o Partido Missão carrega uma valência ativista abundante. Não pretendo mergulhar em hermetismos científicos nesta coluna, mas isso significa, em síntese, que — ao contrário da percepção corriqueira em torno de candidaturas a deputado, Senado ou Presidência — a Missão ostenta algo mais “puro”, mais visceral. É a força do descontentamento jovem contra aqueles que se dizem de direita e, simultaneamente, contra a esquerda. Eis o ativismo tão bem explorado por Norman Schofield no campo da Escolha Social nas ciências políticas.
Em termos de valor, para o ex-deputado estadual, Arthur do Val, o Mamãe Falei, o que consolida o grupo é “propósito”. Um propósito que mistura política prática, mas que, sobretudo, se ancora em uma militância que parece preferir o debate ao ritualismo partidário — talvez justamente o que falte ao Brasil em sua maioria. É isso, segundo ele, que diferencia o movimento de tantas outras siglas. Essa energia dá potência ao Missão, mas também cria um dilema estrutural: como filtrar os melhores nomes dentro de uma militância tão ampla e fervorosa?


Como construir representatividade orgânica nas cidades? Como evitar que o entusiasmo juvenil se dissolva na rotina cartorial da política? Como impedir que oportunistas se aproveitem da marca sem respeitar os princípios inscritos no tal Livro Amarelo?
O MBL, ao menos, demonstra não hesitar em expulsar quem considera desleal, reforçando o que do Val afirmou à esta coluna sobre a persistência na missão: “não importa se o cara tem milhares de votos. Se o ‘Zé Ninguém’ for fiel aos valores do movimento, vamos investir nele”.
Sandro Filho, por indicar a esposa é um exemplo de banimento; João Bettega, por infidelidade; Fernando Holiday, acusado de migrar para o bolsonarismo em busca de votos fáceis. Ser do MBL exige aderência a valores; e essa seletividade, que em outros partidos seria vista como purga interna, ali é apresentada, ao que parece, como integridade.
Ainda assim, persiste a questão essencial — que o próprio Arthur do Val não soube responder com precisão: como identificar o militante realmente valoroso, especialmente para representar na ponta final da política, nas cidades? Como distinguir o idealista do oportunista, quando ambos chegam com a mesma camisa azul e o mesmo discurso liberalizante?
O MBL sobreviveu a três governos, a rupturas internas e a reveses públicos, e hoje se tornou um partido. Hoje, se apresenta como uma força em ascensão, portadora de um projeto de país e não apenas de indignação performática. Hoje, sua militância, convém reconhecer, é organizada, persistente e numerosa. Mas agora cabe ao movimento evoluir como um todo. Seus membros conquistaram mentes — e isso, num país afetivamente polarizado, já é muito. Entretanto, lembremos que a corrida pelo poder também é um combustível instável para projetos que ambicionam longevidade institucional e de interesses escusos na política, tal qual fazem outros partidos.
A Missão, por outro lado, tem um programa, um livro de regras e um público ativista. Agora precisa descobrir se tem também quadros e gestão funcional — e se seus quadros terão consistência para não trair o que está escrito, preto no amarelo, de sustentar a representatividade da militância, e de como o debate público será pautado. Devemos sempre questionar tudo.

