Mãe Catirina estava com desejo, com desejo desses de grávida, sonhava em comer a língua do boi mais bonito da fazenda. Para atender ao pedido da esposa e evitar que o filho nascesse doente – pois quem conhece a crença popular sabe que desejo de grávida é urgente -, Pai Francisco, um vaqueiro simples e trabalhador, decidiu matar o animal.
Só que o boi não era um qualquer. Era o mais valioso do rebanho, orgulho do fazendeiro e símbolo de riqueza. A notícia da morte se espalhou, o patrão ficou furioso e exigiu que Francisco fosse punido.
É então que entram em cena curandeiros, pajés, padres e toda a comunidade, numa tentativa de ressuscitar o boi com reza, tambor e irmandade. Depois de muita música, dança e rituais, o milagre acontece: o boi volta à vida. E o que poderia ter terminado em tragédia, vira festa.

É dessa narrativa que nasce o Bumba Meu Boi. Sua origem foi no Nordeste, em meio ao ciclo do gado, quando o boi era símbolo de riqueza para os fazendeiros e de trabalho árduo para os escravizados e sertanejos. Ao misturar influências indígenas, africanas e europeias, o folguedo atravessou séculos, enfrentou proibições, ganhou diferentes sotaques regionais e, em 2019, foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Hoje, seja nas ruas de São Luís do Maranhão, nas arenas de Parintins ou nas praças de Pernambuco e Piauí, a história de Pai Francisco, Mãe Catirina e do boi que voltou à vida segue sendo contada. Não apenas como uma encenação, mas como um ato de resistência, memória e celebração da cultura popular brasileira.
O que é a festa do Bumba-meu-boi?
A festa do Bumba-meu-boi é uma manifestação da cultura popular brasileira que mistura teatro, dança, música e religiosidade. Ocorre principalmente durante o mês de junho, em sincronia com as festas juninas, mas seus preparativos e ensaios acontecem o ano inteiro em muitas comunidades.

As raízes culturais e simbólicas do Bumba-meu-boi
Estudos do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), mostram que a festa surgiu a partir de práticas dramatúrgicas trazidas pelos colonizadores portugueses, reinterpretadas pelos povos indígenas e ressignificadas pelos africanos escravizados no Brasil. Essa fusão cultural é evidente nas roupas, nos instrumentos, nos cantos e nas coreografias.
O boi é um símbolo ancestral ligado à fertilidade, à força e ao sagrado. Sua morte e ressurreição remetem a rituais agrários e à noção de ciclo da vida. Já a participação coletiva da comunidade revela um forte senso de pertencimento e resistência social, especialmente entre populações marginalizadas.

Reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco em 2019, a festa é dividida em diferentes “sotaques”, estilos que variam de acordo com as regiões e grupos, como o sotaque de matraca, zabumba, orquestra e costa-de-mão, cada um com instrumentos e ritmos próprios.
Em São Luís (MA), por exemplo, os ensaios dos grupos (chamados de “bois”) ocorrem o ano todo e mobilizam bairros inteiros, especialmente nas periferias. A festa também é um motor de economia criativa que gera trabalho para costureiras, músicos, artesãos e produtores culturais.
O boi que segue vivo
Mais do que um evento folclórico, o Bumba-meu-boi é uma tradição viva que resiste ao tempo, às desigualdades e às tentativas de apagamento cultural. Sua força vem do povo e da arte como expressão de vida. Em um país tão diverso como o Brasil, o Bumba-meu-boi é a materialização da potência das vozes populares que, por séculos, mantêm viva uma das tradições mais simbólicas da nossa história.

