Especialistas apontam desafios para garantir comida saudável e sustentável no futuro
Neste 16 de outubro, o mundo celebra o Dia Mundial da Alimentação 2025, que marca os 80 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O tema deste ano, “Mãos Dadas por Alimentos Melhores e um Futuro Melhor”, reforça a importância da união global em torno de uma alimentação saudável e sustentável.
No Brasil, o cenário é de conquistas e contrastes. O país saiu novamente do Mapa da Fome da ONU e atingiu o menor índice de insegurança alimentar grave da história, segundo o IBGE. Mas o desafio está longe de acabar. Mudanças climáticas, desmatamento e desigualdade social ainda ameaçam o direito básico à comida.
Avanços no combate à fome, mas desigualdades persistem
Dados do IBGE mostram que o número de lares em situação de insegurança alimentar grave caiu 19,9% entre 2023 e 2024, representando 624 mil famílias a menos passando fome. No total, 75,8% dos domicílios brasileiros já se encontram em situação de segurança alimentar, índice próximo ao recorde histórico de 2013.
Apesar da melhora, a fome ainda é uma realidade mais dura nas regiões Norte e Nordeste, onde os índices de insegurança alimentar moderada e grave ultrapassam a média nacional. As desigualdades de renda, gênero e raça também seguem sendo determinantes: lares chefiados por mulheres ou pessoas negras continuam mais vulneráveis.


Em entrevista ao VTV News, o professor Alisson Machado, do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, afirmou que o mundo tem capacidade de produzir alimentos suficientes para toda a população, mas o sistema atual prioriza o lucro e não o direito à alimentação. Ele lembra que, no Brasil, o crescimento da produção de commodities contrasta com a redução de alimentos básicos, o que reforça o desequilíbrio entre oferta e necessidade.
A doutoranda Débora Bós e Silva, do programa Sustentarea/USP, também falou ao VTV News e reforça que a soberania alimentar só será possível quando houver valorização dos sistemas locais e dos saberes tradicionais. Segundo ela, garantir o direito à comida passa por fortalecer a agricultura de base familiar, proteger territórios indígenas e quilombolas e assegurar o acesso universal a alimentos saudáveis.
Fome global e cortes na ajuda humanitária
Enquanto o Brasil apresenta avanços, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU alerta para uma crise global. De acordo com o órgão, 13,7 milhões de pessoas em países como Sudão do Sul, Haiti, Afeganistão e República Democrática do Congo estão em risco de fome severa devido aos cortes na ajuda humanitária.
O relatório “A Lifeline at Risk” aponta que o PMA deve receber 40% menos recursos em 2025, o que pode ampliar o número de pessoas em situação de emergência alimentar.
Clima e biodiversidade: a ameaça silenciosa
Os eventos climáticos extremos e a perda de biodiversidade também impactam diretamente a produção de alimentos. As recentes enchentes no Rio Grande do Sul, que devastaram plantações e comprometeram a colheita de arroz, são exemplo de como o clima afeta diretamente a produção de alimentos.


Para o professor Alisson Machado, “por eventos climáticos extremos podemos citar secas, ondas de frio e calor, incêndios florestais, vendavais e enchentes. Todos, em maior ou menor grau, podem impactar a produção de alimentos”.
A doutoranda Débora Bós e Silva reforça que o problema é global.
“Os impactos econômicos, sociais e ambientais das mudanças climáticas estão sendo sentidos em todos os locais e não existem mais dúvidas de que se trata de um fenômeno sério a demandar ações concretas”.
Débora também alerta para as consequências na qualidade dos alimentos. “O aumento da temperatura e a alteração no regime de chuvas afetam diretamente o crescimento e a qualidade nutricional dos alimentos. Isso compromete a segurança alimentar e eleva os preços, impactando principalmente populações em situação de vulnerabilidade.”
O desafio dos ultraprocessados e da má alimentação
Enquanto o desafio da fome cresce em partes do mundo, o clima impõe novas pressões sobre os sistemas alimentares. A fome e a obesidade, que parecem problemas opostos, na verdade, caminham juntas no Brasil.
Para as famílias em insegurança alimentar, o consumo de alimentos ultraprocessados (ricos em calorias, gorduras e açúcares) é muitas vezes a única opção acessível. Isso reduz a qualidade da dieta e aumenta o risco de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão.
Mais de 1 bilhão de pessoas vivem com obesidade no mundo, sendo 879 milhões de adultos e 159 milhões de crianças e adolescentes, segundo dados de 2022 divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).


Para Alisson, a insegurança alimentar e a obesidade coexistem. “Quem enfrenta a fome tende a consumir mais alimentos baratos e ultraprocessados, o que reduz a qualidade da dieta e aumenta o risco de ganho de peso.”
Débora explica que o consumo crescente de ultraprocessados é hoje um dos principais obstáculos à saúde e à sustentabilidade.
“Essa desigualdade é reflexo de um sistema alimentar que prioriza o lucro em detrimento da saúde e da equidade. A ampla oferta de alimentos ultraprocessados, baratos e de baixa qualidade nutricional, somada à falta de acesso a alimentos frescos e saudáveis, contribui para o aumento de doenças crônicas, mesmo em contextos de insegurança alimentar”.
Essas considerações conduzem para o entendimento de que, nos últimos anos, está ocorrendo um processo de transição nutricional, mudança no padrão de alimentação, com o consumo menor de carboidratos e mais gorduras. As evidências recentes, por sua vez, demonstram que o consumo de ultraprocessados é prejudicial à saúde e estão associadas ao aumento dos índices de sobrepeso, obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis, gerando uma sobrecarga no sistema de saúde, prejuízos econômicos e impulsionando as mudanças climáticas.
Para reverter esse quadro, é essencial investir em políticas públicas de educação alimentar e nutricional, fortalecer a agricultura familiar, ampliar o acesso a alimentos saudáveis nas periferias urbanas e regulamentar a publicidade de produtos alimentícios, especialmente aquelas que são voltadas a crianças e adolescentes.”
Caminhos para um futuro justo e sustentável
Os especialistas entrevistados pelo VTV News defendem uma transformação profunda nos sistemas alimentares. Entre as medidas apontadas estão o fim do desmatamento, a redução do uso de agrotóxicos, o combate ao desperdício e o incentivo à produção sustentável de frutas, legumes e cereais.
Débora Bós e Silva destaca que essa transição depende de uma visão de longo prazo e da cooperação entre governos, empresas e sociedade civil.
“A construção de sistemas alimentares sustentáveis passa também por reconhecer que a alimentação é um direito humano, e não uma mercadoria. Os sistemas alimentares sustentáveis se fundamentam na exigência de que os sistemas alimentares respeitem o meio ambiente e impactem positivamente na saúde dos seres humanos”.
Problemas complexos como os que estamos vivendo perpassam, indiscutivelmente, pelo incentivo às práticas agroecológicas, a redução das perdas e do desperdício de alimentos, a promoção de feiras locais, a garantia de financiamento para pequenos produtores e a elaboração de políticas públicas que incorporem a perspectiva da justiça climática e alimentar. Em síntese, a transição para modelos alimentares sustentáveis depende não apenas de escolhas individuais, mas de empresas e governos, que incorporem as pautas climáticas e alimentares em suas agendas.
A cooperação entre cidades é a chave para a implementação de uma governança inclusiva e resiliente nos sistemas alimentares sustentáveis, a partir da implementação de um paradigma holístico, que busque, a um só tempo, garantir a sustentabilidade em suas diferentes dimensões (social, ecológica e econômica) e a segurança alimentar e nutricional.
Um exemplo interessante é o das “cidades comestíveis”, desenvolvido pela Ana Carla Rocha, que surgem como uma proposta unificadora para os desafios existentes e representam exemplos concretos de políticas alimentares urbanas, ações que visam melhorar a alimentação e a nutrição da população de uma cidade. “Daí a sua indiscutível associação com as bases do direito à cidade e do planejamento urbano e estão se disseminando pelo mundo.”
Para Alisson Machado, pensar em um futuro alimentar mais justo também passa por quem produz. Ele destaca que é preciso dar mais apoio aos pequenos agricultores, que muitas vezes não têm acesso a recursos financeiros ou técnicos. “Ao trabalhar neste último ponto, podemos aumentar a produção de alimentos mais saudáveis para todos”.

