Lançada em 2002 no “Acústico MTV Cidade Negra”, “Girassol” é uma das músicas mais emblemáticas da carreira de Toni Garrido e do grupo Cidade Negra.
A canção nasceu de uma parceria entre Toni, Da Ghama, Lazão, Bino Farias e Pedro Luís e tem uma origem tão poética quanto real, como contamos nesta matéria especial.
Certa vez, Toni visitou um casal de amigos que havia perdido um bebê e decidiu levar um buquê de girassóis. O gesto, simples, transformou o clima da casa e inspirou o primeiro verso da canção:
“No coração de quem faz a guerra nascerá uma flor amarela como um girassol.”
Dessa experiência nasceu uma letra sobre esperança, leveza e renascimento, temas que ecoaram em todo o país e consolidaram o grupo como um dos grandes nomes do reggae-pop brasileiro.
A nova letra de “Girassol”
Mais de vinte anos depois, Toni Garrido voltou a revisitar a música que consolidou ainda mais a carreira da banda. No início de outubro de 2025, durante uma apresentação no programa “Altas Horas”, da TV Globo, o cantor e compositor revelou ter mudado um verso central da canção:
Onde antes se ouvia:
“Já que, pra ser homem, tem que ter a grandeza de um menino, de um menino.”
Toni resolveu mudar para:
“Já que, pra ser homem, tem que ter a grandeza de uma menina, de uma mulher.”
Nas redes sociais, pessoas se manifestaram contra e a favor. A mudança dividiu opiniões, inclusive entre os autores da canção.
Da Ghama, guitarrista que deixou o grupo em 2007 e coautor de “Girassol”, se manifestou publicamente dizendo que se sentiu “altamente desrespeitado como compositor”. Segundo ele, o verso original tinha um significado muito claro: uma crítica à violência, à guerra e à ausência de empatia.
“Era um hino de trazer luz para pensamentos obscuros”, disse o músico, em sua conta no Instagram.
Entre a liberdade artística e o respeito à obra
O episódio levantou uma discussão antiga, mas sempre atual: até onde vai o poder do intérprete sobre a obra que canta?
Quando uma música é lançada e abraçada pelo público, ela ganha vida própria, deixa de ser apenas de quem a escreveu. Ao mesmo tempo em que a música é um organismo vivo e adaptável a seu tempo e mudar um trecho pode ser um gesto respeitoso e simbólico – para muitos – a mudança também é sensível, já que toca algo que pertence à memória afetiva de que escuta.
A mudança, segundo Toni, não foi planejada. Nasceu de um impulso afetivo, de um desejo de atualizar a canção para um tempo em que a presença feminina é cada vez mais central.
“Foi uma brincadeira amorosa”, explicou à revista Rolling Stone Brasil. “Quis celebrar a força das mulheres, porque todo homem carrega em si a presença do pai e da mãe. A arte é livre. Cada um pode interpretar e adaptar a música do jeito que quiser. O importante é que ela continue tocando as pessoas.”
Representatividade e escuta do presente
A releitura proposta por Toni Garrido também abre espaço para um olhar mais amplo sobre representatividade e sensibilidade contemporânea.
Ao incluir “menina” e “mulher” no verso, o artista expande o sentido da canção, que passa a celebrar também a força feminina, a delicadeza e o poder de regeneração que inspiraram o próprio nascimento de “Girassol”.
É como se, vinte anos depois, a música se voltasse para o mesmo sol, mas de outro ângulo: com novas sombras, novas luzes e novos significados. “Girassol” continua falando sobre amor, empatia e transformação, mas agora com um olhar que acolhe o feminino como fonte de sabedoria, força e equilíbrio.
Novos Tempos: outros artistas que mudaram suas canções
Mais do que uma polêmica, a mudança proposta por Toni Garrido reafirma a natureza viva da arte. Canções mudam, se transformam, respiram novos tempos.
Toni Garrido segue sendo uma das vozes mais coerentes e inquietas da nossa música: sempre em movimento, sempre buscando novas formas de cantar o mesmo amor. Segundo ele, “a arte é livre”.
Outros artistas da nossa música também já fizeram alterações nas suas letras, ou deixaram de incluí-las em seus repertórios, pois – ao olharem para o passado – decide preservar o repertório segundo novas convicções.
- Em 2022, o próprio Chico Buarque admitiu que não canta mais a canção “Com Açúcar, Com Afeto” (1967) – composta originalmente para Nara Leão – porque a letra, segundo ele, “já não se encaixa no que acredito hoje” ao falar de uma mulher que sofre e espera aprovação do marido. Chico afirmou: “Vou sempre dar razão às feministas” ao comentar o episódio.
- No mesmo ano, Martinho da Vila falou sobre a música “Você Não Passa de Uma Mulher” (1975) – tema da novela “Pecado Capital” – e disse que não queria cantar essa música, mesmo ela sendo um sucesso. Ele reconhece que a letra estava fundada em um contexto dos anos 70 e que hoje ele não se sentiria confortável.

