A história da música “Vapor Barato” se mistura com a história do Brasil e com a história da sua intérprete oficial: a musa gigante e inigualável, Gal Costa. Hoje, é dia de saber mais sobre essa história.
Contexto em que “Vapor Barato” foi criada
“Vapor Barato” é uma composição do poeta Waly Salomão e seu parceiro, o músico Jards Macalé, lançada por Gal Costa em “Fa-Tal – Gal a todo vapor”, álbum mais importante da carreira primorosa de Gal e obra-prima da discografia brasileira.
Lançado pela gravadora Philips no fim de 1971, o disco é um registro ao vivo e sem filtros do show “Fatal”, apresentado por Gal Costa no mesmo ano – no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro – e dirigido por Waly Salomão.
A gravação virou um LP duplo – com direção de produção e estúdio de Roberto Menescal– que levou o nome do show e ganhou o subtítulo “Gal a todo vapor”. É uma gravação mais “suja”, que conta com ruídos por conta dos equipamentos existentes para a captação daquela época e que tem até um momento inusitado que a deixa ainda mais especial: a cantora deixa cair o banquinho baixo em que estava sentada, fazendo um barulho forte e dizendo: “Acontece!”.
É maravilhoso, porque é Gal em sua versão mais nua e crua: uma voz espetacular, potente, imensa, divinal. Menescal conta que queria muito captar aquele show ao vivo, primeiro pelo sucesso que ele era, “um acontecimento”. E também porque ele conta que Gal rendia muito no palco, mais até do que no estúdio.
O álbum, que consolidou Gal como musa e uma das principais vozes da contracultura brasileira, é – ainda hoje – impressionantemente atual. Ainda sobre a pressão dos anos de ditadura militar e três anos depois do silenciamento forçado provocado pelo decreto do Ato Institucional nº 5, o álbum teve intensa repercussão e dimensão sócio-política e parecia ser um respiro, uma luz no fim do túnel, um momento de fuga e sonho, de poder dizer não às convenções de uma sociedade e de um país calado pela repressão.

Gal Costa tornou-se porta-voz dos anseios tropicalistas (saiba tudo sobre a Tropicália nesta matéria especial), depois que seus amigos e parceiros Caetano Veloso e Gilberto Gil (líderes do Movimento Tropicalista) foram presos pela ditadura e partiram para o exílio forçado em Londres, em 1969.
O álbum “Fa-Tal – Gal a todo vapor” traduzia os anseios de uma geração calada e perdida em suas próprias dúvidas, em um álbum feito de canções que afloram estes sentimentos à flor da pele.
Grandes nomes da MPB assinam as faixas, com interpretação visceral somada à voz celestial de Gal Costa, àquela época, musa da “geração do desbunde”. O show era dividido em duas partes: a primeira mais intimista e acústica – com Gal ao violão – e a segunda já com a banda no palco, mais agressiva e rock’n roll, postura que Gal vinha buscando adotar em suas canções nos últimos anos. O LP inverte esta ordem, mas o CD – lançado anos depois – é fiel ao que é apresentado no show.
“Vapor Barato” era exatamente a canção que fazia a transição entre essas duas partes do show: a cantora começava a canção somente ela ao violão (nesta época Gal tocava bastante violão em seus shows) e – de repente – a banda toda entrava para acompanhá-la, em uma catarse musical e política.

A história da música “Vapor Barato”
Quando Gil e Caetano foram para o exílio, Gal foi abraçada por outra dupla de parceiros: Waly Salomão e Jards Macalé, que passaram a trabalhar direto com a cantora.
Os dois compuseram muitas canções em parceria e uma delas foi “Vapor Barato”.
Certo dia, Waly, grande poeta, chegou na casa de Jards, grande músico, com uma letra e falou: “Vê se presta”. “Claro que prestava!”, conta Macalé, que pegou o violão, começou a ler a letra, foi cantando e – em 15 minutos – “Vapor Barato” estava pronta.
Jards Macalé conta em entrevista, sobre os tempos duros nos quais a música foi feita: “Aquela frase ‘Eu estou tão cansado’ é também uma despedida, é um rompimento com o país. É a necessidade de sair, porque ficar era impossível. (…) Afinal de contas: o que nós queríamos? Paz. Amor. É muito? É. E nós estávamos exigindo isso.”.
E Gal complementa: “Eu vivi aquele tempo todo, não foi fácil, foi difícil. E o difícil também às vezes cansa você, né? ‘Sim, eu estou tão cansado, mas não para dizer que não acredito mais em você.’. Em você, em mim, naquele cara que é bacana, entende? É uma coisa de resistência, da coragem, da valentia, da luta. Pra resgatar os valores, as coisas boas que você pensa, que você quer.”, explica a cantora sobre essa parte da música.
Macalé ainda explica o que significa o nome da música: “Vapor Barato”. Ele conta que a expressão tem dois significados: “vapor” da água mesmo, aquele vaporzinho que a gente vê na cachoeira, e “vapor” que é o cara que vende droga.
Já “barato” pode ser tanto o “barato” que a droga dá em quem usa, como o “barato”, de algo que não custa caro.
Gal e sua turma iam muito à praia de Ipanema naquela época, lugar que virou um “point” do Rio de Janeiro, onde o pessoal ia tocar violão, tinham umas dunas que ficaram, inclusive, conhecidas como “As Dunas de Gal”. “Ali que era o ‘Vapor Barato’“, conta Roberto Menescal. “Onde se fumava muita maconha, e Gal era a rainha da praia. Ela se sentava ali nas dunas, todo mundo adorava.”, conclui.
Na época em que compuseram “Vapor Barato”, Waly Salomão estava dirigindo o show “Fa-tal” e mostrou a canção para Gal, que adorou e a incluiu no show. Jards Macalé conta que foi Gal quem incluiu a parte em que – depois do verso “Eu não preciso de muito dinheiro”, escrito por Waly – ela diz “Graças a Deus!”.
Na hora, o poeta não concordou: “Deus não rima com dinheiro, Gal!”, ele teria dito. Mas a frase cantada por Gal Costa entrou para o disco e ficou eternizada na canção, aclamada pelo público depois do icônico show e do antológico disco.
Macalé, anos depois, em uma viagem aos Estados Unidos, percebeu que a frase escrita nas notas de dólar americano é “In God We Trust” (em português: “Nós acreditamos em Deus”). E o música ironiza: “Gal estava certa! Mas ela estava certa em dólar!”.
E Gal Costa soube muito bem imprimir a sua personalidade, o seu estilo naquela canção. Inclusive ela inseriu uma improvisação inesquecível – criada por ela – com o som da sua voz imitando um instrumento, mostrando toda a sua qualidade vocal e sua qualidade de intérprete.
Versão com Zeca Baleiro
Anos depois, quando Gal Costa foi gravar o seu disco “Acústico MTV”, o produtor musical do disco, Marcos Mazzola, sugeriu que ela conhecesse outro artista da mesma gravadora que ela, que estava lançando o seu primeiro álbum e que Mazzola também estava produzindo: Zeca Baleiro.
Zeca tinha incluído em seu primeiro álbum – “Por Onde Andará Stephen Fry?”, de 1997 – um medley (junção de músicas) entre “Vapor Barato” e uma composição sua: “À Flor da Pele”.
Mazzola mostrou a versão de Zeca Baleiro para Gal Costa, que amou a junção das músicas e convidou Zeca para participar do seu show do disco “Acústico”. A belíssima versão do dueto de Gal e Zeca ajudou a impulsionar de vez a carreira do talentoso músico maranhense para todo o Brasil.
Versão moderna no álbum “Recanto”
Gal conta que cantou “Vapor Barato” em vários momentos da sua vida. Uma versão especial é a do seu álbum “Recanto Ao Vivo”, de 2013, que traz toda uma roupagem moderna para a canção e também toda a maturidade dos deus então 68 anos, 42 anos depois da gravação original em “Fa-tal: Gal a todo o Vapor”.
“Gravei com diferentes arranjos o ‘Vapor Barato’. E no ‘Recanto’ tem uma força muito grande, traz toda uma carga de uma vida vivida por mim. É toda uma história que está ali impressa naquele momento. Uma carga inevitável e verdadeira.”, analisa a cantora.
Versão da banda O Rappa
“Vapor Barato” é uma canção que passa de geração em geração, sem nunca ficar desatualizada.
A banda “O Rappa” gravou a música em 1996, em seu segundo álbum “Rappa Mundi”, com produção musical de Liminha, com estrondoso sucesso. Foi o produtor e baixista que sugeriu que a banda incluísse “Vapor Barato” no repertório do disco.
“Essa gravação do Rappa foi curiosa, porque eles vieram mostraram as músicas que eles já tocavam como banda, mas o disco ainda não estava fechado e eu sentia que tinha uma coisa meio para baixo no disco, que não estava com pinta de que de que ia decolar.”, conta Liminha, que insistiu que a banda inserisse algum hit já bem conhecido no disco, para que eles tivessem mais êxito nacional do que tiveram no primeiro álbum de 1994.
Marcelo Yuka, um dos fundadores, compositor e baterista do Rappa na época, conta que – em um primeiro momento, foi resistente a essa ideia: “Eu sempre ficava muito nervoso com ele sempre pedindo ‘Ah cara, vocês tem que gravar um hit!’. E eu aí cara e puxava o freio de mão, porque eu nunca pensei em compor um hit. Se a gente teve músicas que foram populares e são populares até hoje, foi como consequência, então essa necessidade de propor fazer um hit, isso de alguma maneira me violentava.”.
Yuka contou na época, que topou gravar, porque era muito fã de Waly Salomão, tinha ele como referência, e que o próprio poeta mostrou “Vapor Barato” para ele como sugestão. Quando o baterista mostrou a música para a banda, todos gostaram e toparam gravar sua versão, que acabou tornando-se um sucesso no Brasil inteiro e também contribuindo com a produção nacional de O Rappa.
“Quando a gente grava ‘Vapor Barato‘, é a primeira vez que – de uma maneira massiva – os meios de comunicação e o público entendem que a gente estava que a gente estava querendo dar relevância a compositores brasileiros a sonoridades brasileiras.”, refletia Yuka.
A gravação de O Rappa mostrou um repertório pop dos anos 70 para uma nova geração e criar em outras pessoas essa indignação da letra, contida em “Vapor Barato”.
Versão para o filme “Terra Estrangeira“
Também em 1996, “Vapor Barato” entrou para a trilha sonora do filme “Terra Estrangeira”, de Walter Salles, protagonizado por Fernanda Torres(sim, a mesma parceria de “Ainda Estou Aqui”).
O filme fala sobre ser estrangeiro, tentar a vida em um país que não é o seu, além de ser estrangeiro dentro de si mesmo, estar perdido na vida. E “Terra Estrangeira” é retratado exatamente durante a “Era Collor”, mais um período extremamente difícil na história do nosso país, tomado pelo caos do governo de Fernando Collor de Mello.
Fernanda conta que ficava cantando a música baixinho no set de filmagem e que o diretor estava procurando justamente uma canção para encerrar o filme, quando a personagem de Fernanda, Alex, está dentro de um carro que anda por uma estrada (sem spoilers!).
Então, a própria atriz diz: “Pô! Mas eu tô cantando uma música o tempo inteiro que cabe direitinho no filme!”.
Assim, Walter colocou primeiro Fernanda cantando a cena de forma muito emocionante enquanto chora dentro do carro e depois entra a canção original, interpretada por Gal Costa, que se sobrepõe à voz de Fernanda. Visceral e magistral, tanto a interpretação de Gal, quanto toda e qualquer atuação de Fernanda Torres.

